Estava conversando com um amigo, com quem freqüentemente discuto sobre a vida, teologia, Igreja, e ele comentou sobre a necessidade que temos hoje de reconsiderar alguns princípios e valores bíblicos à luz da realidade pós-moderna em que vivemos. As verdades continuam as mesmas, mas a realidade mudou e torna-se necessário perguntar mais uma vez sobre a forma como estas mesmas verdades e princípios serão relevantes para nossa cultura. Ele apresentou algumas de suas preocupações. O que significa, por exemplo, para um cristão inserido num mercado altamente competitivo, tecnológico e consumista, ser “pobre de espírito” ou “manso”? Ou, como é que um cristão, trabalhando como executivo ou empresário, pode incorporar em sua experiência espiritual o conceito bíblico da simplicidade e da confiança?
Alguns preceitos bíblicos precisam ser repensados à luz da nova realidade – inclusive, aqueles que considero básicos para a experiência cristã. Qual o significado da fé para um cristão pós-moderno? O que ela significa para alguém que vive cercado de recursos tecnológicos e científicos, que tem uma boa renda e um padrão de vida saudável? Num passado não muito distante, o exercício da fé acontecia em virtude das limitações que tornavam a vida insegura e frágil. Os pais, por não saberem onde os filhos se encontravam, aflitos, oravam para que Deus os guardasse do perigo e do mal. Hoje, ao invés de orar, tomam o celular, ligam e, imediatamente, são tranqüilizados. Diante de um problema de saúde, nossos avós oravam e exercitavam a fé na esperança da intervenção divina. Atualmente, antes da oração, os cristãos pós-modernos buscam o melhor especialista no seu plano de saúde e depositam na ciência e na competência do profissional o cuidado e a cura do enfermo.
As situações de risco e limite vão se tornando cada vez menores, requerendo de nós uma nova abordagem sobre a compreensão da fé. Para muitos cristãos, fé é aquilo que nos faz crer no impossível, que nos ajuda a enfrentar o improvável ou que nos faz acreditar no sobrenatural. Pensando assim, a fé é aquilo que acionamos em situações onde se requer uma ação divina sobrenatural; é aquilo a que recorremos quando se esgotam nossos recursos. Parcialmente, isso é verdade. O problema é que, para muitos cristãos pós-modernos, os recursos tecnológicos e científicos trazem possibilidades inimagináveis – logo, muitos vivem toda sua existência sem a necessidade de “acionar a fé” para atender a uma situação que efetivamente foge ao controle.
No entanto, quando o autor de Hebreus nos fala que “sem fé é impossível agradar a Deus”, ele não se refere à fé como o recurso que usamos nas situações críticas da vida. Ele não diz que “sem fé é impossível realizar milagres”, mas que “sem fé é impossível agradar a Deus”. Para ele, é a fé que nos torna agradáveis ao Senhor. Neste sentido, a fé envolve a totalidade da vida, e não apenas aquelas situações limites onde nossos recursos não têm soluções.
Sabemos que a única pessoa que agradou plenamente a Deus foi seu Filho Jesus Cristo por causa de sua vida de absoluta entrega e obediência e da oferta perfeita que apresentou ao Pai, entregando-se para cumprir seu propósito redentor. Diante disso, não fica difícil entender que a fé, num sentido mais amplo e bíblico, tem a ver com a forma como vivemos e respondemos aos propósitos de Deus e nos tornamos agradáveis a ele.
Quando as Escrituras falam da fé, referem-se a um conjunto de realidades espirituais que se interagem na experiência cristã. O conceito bíblico de fé sempre envolve convicções, confiança, obediência, coragem e perseverança. É por meio da fé que verdades são compreendidas e cridas. Podemos então considerar que a fé em ação é a a obediência e a perseverança naquilo que cremos e que nos é revelado por Deus. É neste contexto que podemos compreender melhor o valor e significado da fé para o crente de hoje. Se, por um lado, vivemos numa sociedade que cada vez mais dispensa a fé, por outro, reconhecemos que nunca ela foi tão requerida para o viver perseverante e obediente como percebemos hoje.
Se reconhecemos o valor da fé em termos apenas funcionais, caminharemos rapidamente para a falência do cristianismo – afinal, temos os recursos tecnológicos e científicos que atendem com eficiência grande parte das demandas e necessidades pessoais e comunitárias. Acabaremos nos tornando ateus funcionais. Contudo, se reconhecemos o valor da fé em termos relacionais, iremos considerá-la como uma virtude que, junto com o amor e a esperança, caminharão conosco até o fim numa longa jornada em direção a Cristo. A fé é o fundamento da perseverança e da confiança. É por meio dela que iremos prosseguir naquilo para o qual fomos chamados.
O testemunho bíblico da fé é a perseverança na nossa caminhada. Amar apenas as pessoas que nos amam é natural, mas amar aquelas que não merecem nosso amor requer fé e perseverança, confiança e obediência. Experimentar a alegria e a paz em situações de tranqüilidade e conforto também é natural – contudo, permanecer alegres e cheios de paz por causa da salvação em Cristo e da certeza de sua presença redentora, mesmo quando caminhamos pelo vale de sombra e morte e quando tudo conspira contra a alegria e paz, é um ato de fé e perseverança. Prosseguir buscando o Reino de Deus em primeiro lugar e nos consagrando a Jesus e ao seu chamado, dedicando o melhor que somos e temos a ele na promoção da redenção, justiça e liberdade, é a fé em ação.
Num mundo globalizado e tecnológico, a fé só terá sentido se for compreendida como o meio de nos tornar agradáveis a Deus. Agradá-lo é trilhar o mesmo caminho de perseverança, auto-entrega, serviço, sofrimento e obediência que seu eterno Filho trilhou. É preciso reconhecer que fé e perseverança são faces diferentes de uma mesma moeda. Se por um lado é pela fé que conhecemos e experimentamos a graça de Deus, por outro, se não perseverarmos até o fim, não seremos salvos. Uma fé não perseverante é apenas uma ferramenta funcional de nenhum valor. Já a fé que persevera é um recurso relacional poderoso.
Viver pela fé ou andar pela fé é prosseguir no caminho da obediência e da coragem evangélica em direção à conformidade com a imagem de Jesus Cristo.
Ricardo Barbosa de Souza é conferencista e pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasilia
Nenhum comentário:
Postar um comentário