3.6.05

Desafios à identidade Cristã


Vivemos um tempo de grandes desafios à identidade cristã, porque nossas vontades, nossos instintos, nossas gulas estão sendo estimulados por uma oferta imensa de oportunidades de satisfação imediata, com embalagens superatraentes. A propaganda nos seduz; a gula nos seduz. Uma sedução ilegítima. É a lógica do mercado, que exige consumo, para sobreviver. Isso serve tanto para um sapato, uma roupa, um brinco, um relógio, uma massa de tomate ou um namorado. Se não houver quem consuma, as fábricas fecham.
E como a mídia é um agente desse mercado, ela não-somente apresenta os produtos, mas também transmite e instaura a sua lógica, o seu "nomos", sua ordem. Ela recria o mundo em nossas cabeças, conforme a sua imagem e semelhança. E se passamos a viver nesse novo mundo, criado pela mídia, passamos a ter novos senhores. Os senhores do mercado e da mídia. Passamos a servi-los, mesmo sem saber.
Que grandes senhores tem o mundo! Jacques Ellul diz que a besta do Apocalipse, diante da qual todos se curvarão, é a propaganda, a mídia. Mas a Bíblia fala de uns poucos que não se curvarão diante dela, e mesmo ferozmente perseguidos, preferirão servir ao Senhor, e viver em seu mundo.
Essa lógica do mercado a que nos referíamos, traz um paradoxo. O paradoxo da modernidade: muito conhecimento, mas pouca sabedoria. Vivemos tempos de vendavais. Tempos de paixões irrefreadas. Vivemos um tempo em que criamos todo um "nomos", toda uma ordem que justifique nossas paixões. E não percebemos que estamos mordendo o anzol que o mercado nos lança. Mordemos a isca, com anzol e tudo; e somos fisgados pelo céu da boca.
Consumismo
Esse fisgar pelo céu da boca não se refere apenas à parte da comida. Não se refere apenas à indústria de comestíveis. Nós nos alimentamos de muito mais que isso. Nos empanturramos de status, de poder, de roupas, de carros, de cosméticos, de sapatos, de tênis; nós nos alimentamos de bares, de clubes caros, de viagens internacionais; nos saciamos de "ter estado em Orlando"; de "ter estado no Louvre" — não apenas porque o museu é instrutivo, mas, principalmente, porque podemos dizer que estivemos lá, e no mundo criado pelo mercado, isso conta muito ponto. Alimentamo-nos de ter videocassete, telefone celular, caneta Mont Blanc, agenda Casio, videogames, TV a cabo. Na verdade, nós nos alimentamos de muito mais do que podemos digerir, e temos indigestões homéricas. As prateleiras da nossa sociedade-supermercado nos torna acríticos e consumistas.
Vivemos, enfim, um tempo de obesidade física, intelectual e moral. Somos gordos e balofos nesses três níveis.
Consumismo de Sexo
O sexo é considerado pela nossa sociedade-supermercado como mais um item da prateleira de coisas com as quais devemos nos empanturrar para que alguém enriqueça. Assim, ele é apresentado como um item de consumo: necessário, irrefreável; um direito inalienável etc. Termos fortíssimos, que nos dão a "certeza" de que, além de termos direito a ele, precisamos desesperadamente dele para a nossa própria sanidade mental e sobrevivência física. "Se não fizer, enlouquece".
Eu diria que, para quem vive no mundo criado pelo mercado e estabelecido pela "besta", a mídia, essas coisas são, de fato, elementos de sobrevivência. Porque sem elas, você está por fora, você está morto para esse mundo. Você não tem amigos ou colegas; deixa de ser popular, não consegue falar a mesma língua, fica "caretão".
Interessante é notar que o bom-senso é totalmente escamoteado e evitado nessa área. Sobre a comida, ainda se encontra quem recomende moderação e cuidado; há quem fale de comida natural, macrobiótica; há quem fale de agrotóxicos etc. De que estão falando? De bom-senso, de sabedoria, em relação à comida. De privação de comida. De se negar o prazer de comer tudo o que dá vontade. De colocar uma coleira nos instintos.
Mas sobre o sexo, as pessoas têm medo de ir ao fundo da questão e se tornarem desagradáveis e impopulares. Os governantes tornam-se amorais e populares, e não querem atritos com ninguém. Preferem distribuir camisinha de graça nas festas e no carnaval, como se isso resolvesse alguma coisa.
Por que será que hoje em dia temos tão poucas vozes falando sobre isso? Por que será que tão pouca gente se levanta contra os senhores da mídia, para dizer que podemos ter indigestão disso também; que podemos nos tornar obesos em relação a isso também? Que podemos nos tornar escravos disso também? E que bom-senso se aplica a essa área também? Que precisamos de conhecimento e de sabedoria nesse assunto também?
Minha idéia é que o sexo é a grande força que movimenta o consumo. Como é um instinto básico, se você o associar a uma macarronada, muita gente vai consumir o macarrão, para "consumir", imaginariamente, a garota pelada ou o "gato" de zíper displicentemente semi-aberto. Truques da besta. E nós caímos com prazer.
Os tolos, em geral, querem acreditar no que a mídia lhes diz; que esse, como todos os outros apetites, precisa ser satisfeito, ao nível de empanturramento, e com a urgência sugerida, senão morrem ou ficam "pirados". E para serem "normais", engolem tudo: "a vida é assim, para quem tem coragem de assumi-la", dizem. Sem medo de ser feliz. Você está nessa, ou é um "legume"?
Conseqüências
Já não é possível fechar as vistas para as conseqüências dessa obesidade moral. Uma delas é uma nação de pessoas fracas diante de uma vitrine. Gente endividada e falida, que se avalia e se mede pelo que tem e não pelo que é. Gente superficial e fútil, que vive sob cosméticos. Gente que alimenta suas almas e intelectos com a comida fornecida pela revista Caras.
Outra conseqüência, é a indústria da prostituição, que cria um mercado fortíssimo, com tráfico de escravos, envolvendo meninos e meninas; com gigolôs, cafetinos e cafetinas, explorando meninas e rapazes; com desaparecimento de crianças em números tão grandes que acabam por preocupar os pais, líderes, autoridades e governantes. Agora, aparecem as doenças venéreas de disseminação mundial e sem cura, como a AIDS, destruindo tudo o que encontra pela frente, inclusive bebês inocentes, para não falar no famigerado turismo sexual.
Vivemos um tempo confuso porque, ao mesmo tempo em que sabemos que isso tudo tem a ver com esse apetite irrefreado de consumo, não queremos parar de comer e não aceitamos nos impor qualquer regime; não queremos controlar essas coisas, porque comprar por comprar, no fundo, é como colher o fruto da árvore do bem e do mal, que todos querem provar. Para refrear essa área seria necessário mudar a lógica desse mercado. E isso, "nossos senhores" não podem fazer. Seria como um suicídio. Esses senhores precisam, para sobreviver, continuar afirmando: coma de tudo; você tem necessidade de tudo; não se negue nada. Afinal, você merece tudo.
E então, vêm os paliativos: políticas governamentais, líderes fingindo que estão preocupados, efetivamente, com o assunto, mas jamais tomando qualquer atitude conseqüente. Não falta conhecimento a respeito dessas coisas. O que falta é sabedoria, que vergonhosamente é chamada de "vontade política". Vovó chama isso de falta de vergonha na cara.
Novo Senhor
Dizemos que somos cristãos. E isso quer dizer, no mínimo, que não somos súditos desses senhores do mercado. Servimos ao senhor Jesus, a quem nos submetemos, um dia, integralmente, em arrependimento, devoção e fé. Não precisamos fazer tudo da forma como eles mandam. Somos livres em relação ao poder de sedução do mundo. Não quero dizer que somos imunes a essa sedução, mas sim que ela não pode nos escravizar, se não permitirmos. Essa é uma das mensagens centrais do evangelho: Cristo nos liberta do sistema do mundo, mudando nossa cabeça e nosso coração.
Se é assim, o que precisamos para viver neste mundo sem, no entanto, ser dele, é de discernimento espiritual. Precisamos do temor de Deus. Porque o temor do Senhor é o princípio da sabedoria. Mas isso já é outra história.
(Rubem Amorese)

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