22.6.05

Hinologia e Integração (Um Lamento)

Acabo de receber meu brinde de assinatura da revista Ultimato. Um CD, contendo hinos evangélicos tradicionais, interpretados pelo famoso conjunto Vendedores por Cristo. O que, a princípio, fora motivo de alegria, rapidamente se transformou em consternação. Refiro-me às letras dos hinos. Mais de dois terços delas me são estranhas. Simplesmente não são as mesmas letras que aprendi a cantar na minha infância. É um balde de água fria, quando você vai ouvir um hino antigo e não consegue cantar junto. Não ouso afirmar que a letra que aprendi seja a correta. Não sei. Nenhum agravo ao trabalho dos Vencedores, tampouco. Por sinal, de excelente qualidade. Muito menos à iniciativa da Ultimato. Mas fico triste — não consigo evitar — em não poder cantar junto. Entristeço, também, quando imagino que a hinologia evangélica poderia ser um fator de integração dessa grande família. Como nos filmes americanos, em momentos especiais — sejam dramáticos, sejam de comemoração — alguém puxa um hino e todos cantam juntos. O hino funciona como argamassa cultural a unir pessoas "separadas" por cor, raça, política ou geração. O hino, ao ser cantado — celebrado — em conjunto, funciona como elemento de integração, fornecendo a cada indivíduo participante bases históricas para sua identidade pessoal e coletiva. Imagine, entre nós, num grande evento no Maracanãzinho ou no Morumbi, alguém puxar "Comigo habita, ó Deus! a noite vem" — o tradicional "Comunhão Divina" com tradução de João Gomes da Rocha, falecido em 1947 —; música lenta, solene, quase fúnebre, que fala de final de dia, e de vida, de proximidade das trevas, e coisas assim. Imagine, a cena. O que aconteceria? Uma introdução de bateria pesada, em clima de Rock’n Roll, guitarras estridentes, e o dirigente entrando com "A ti ó Deus, fiel e bom Senhor/Eterno Pai, supremo benfeitor". E ainda “mandam pras cucuias”, junto com "as trevas crescem" o bemol do lá de "e o temor também". Em Castelo Forte, Deus, que era "espada e bom escudo", vira " escudo e boa espada". Pode? Porque alguém resolveu que, em vez de rimar com "em todo transe agudo", era melhor "a sua igreja amada". Ficou melhor? Ficou pior? Não sei. Acho que nem importa. O que lamento é que mais um hino tradicional perca o poder de integrar, pela letra, os evangélicos. Sim, vivemos numa sociedade livre e pluralista, onde todo mundo faz o que quer, louva como quer, canta como quer, a letra que quer — Dá licença?! Acho essa liberdade uma grande conquista da humanidade. Mas ao mesmo tempo percebemos que essa liberdade que nos fez mais ricos, mais coloridos, mais modernos, também nos arranca as raízes e nos faz mais sós. Mas isso não é o pior (pode ser pior?). Tem gente especializada em melhorar corinhos. Adicionam estrofes, mudam a melodia, a harmonia, e o ritmo. Chegam a tornar alguns irreconhecíveis. Normalmente esses irmãos são incapazes de fazer seu próprio corinho. No caso dos hinos, ainda se pode alegar (até procedentemente, admito a possibilidade) que a minha versão é que está errada, considerando a antigüidade, diferença de tradução etc. Um dia encontrei o Pr. Paulinho Brito desarvorado em um congresso. Ele estava com o livreto de corinhos na mão, aberto. Ao me ver, me perguntou de chofre: — Rubem, qual é o certo: "aqui viemos te adorar" ou "aqui nós vimos te adorar"? Macaco velho, eu saí pela tangente: — Não importa, Paulo; o importante é o que o autor fez, o original... — Pois o autor fez "aqui viemos te adorar ó Cristo"! — interrompeu ele, exasperado, naquele seu jeito agitado. — Como você sabe? — perguntei. Ele olhou bem para mim, tomou fôlego e respondeu: — O autor sou eu! Eu compus este corinho na semana passada, e já foi "melhorado". Fico feliz, no entanto, que o cânon da Bíblia já esteja encerrado. Já pensou no que fariam, hoje, com o Salmo 23?

(Rubem Amorese)

Um comentário:

TF disse...

O Homem descobriu a pólvora? Quantos hinos têm letras diferentes nos 3 hinários que conheço? Salmos e Hinos, Hinos e Cânticos e Cantor Cristão? A música é a mesma, a letra...completamente diferente!

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